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Enigma: as múmias de papagaios e araras do deserto do Atacama

Papagaios e araras mumificados, vindos da Amazônia, foram encontrados em oásis do deserto chileno; aves possivelmente eram levadas para lá por causa das penas, valorizadas pelas elites da época
Foto: Calogero Santoro, Universidade de Tarapacá, e José Capriles, Penn StateArara-vermelha mumificada recuperada de Pica 8, no norte do Chile
Arara-vermelha mumificada recuperada de Pica 8, no norte do Chile

Os antigos egípcios mumificaram gatos, cães, íbis e outros animais. Isso também ocorreu no deserto do Atacama (Chile): múmias de papagaios revelam que, entre 1100 d.C. e 1450 d.C., o comércio de outras áreas trouxe papagaios e araras para comunidades de oásis, de acordo com um estudo de uma equipe internacional multidisciplinar. Um artigo sobre a pesquisa foi publicado na revista “Proceedings of the National Academy of Sciences” (PNAS).

“As penas são valorizadas nas Américas e as vemos em túmulos de alto status”, disse José M. Capriles, professor assistente de antropologia da Universidade Estadual da Pensilvânia (Penn State, nos EUA). “Não sabemos como as penas chegaram lá, as rotas que tomaram ou a rede dessa atividade.”

Papagaios e araras não são nativos do Atacama – o deserto mais seco do mundo, no norte do Chile. Mas os arqueólogos encontraram penas em sepulturas e preservadas em caixas de couro ou outro material de proteção, e também acharam pássaros mumificados – papagaios e araras – em sítios arqueológicos.

Transporte complexo

“O fato de pássaros vivos atravessarem os Andes com mais de 3 mil metros de altura é incrível”, disse Capriles. “Eles tinham de ser transportados através de enormes estepes, clima frio e terrenos difíceis até o Atacama. E tinham de ser mantidos vivos.”

Capriles, um arqueólogo, cresceu perto de papagaios e araras porque seu pai era administrador da vida selvagem e sua mãe, a boliviana Eliana Flores Bedregal, foi ornitóloga no Museu Nacional de História Natural em La Paz até sua morte, em 2017.

Enquanto fazia pós-doutorado no Chile, Capriles investigou o comércio e transporte de mercadorias como coca, conchas, metais, penas e animais na Bolívia, no Peru e no Chile.

“Calogero Santoro, professor de antropologia da Universidade de Tarapacá [Chile], mencionou os pássaros à minha mãe quando ela veio visitá-lo e sugeriu que os estudássemos”, disse Capriles. “Nossa ideia era dizer algo sobre esses papagaios, de onde eles vinham e quais espécies eram representadas. Minha mãe é coautora deste artigo.”

A maioria dos restos de papagaios e araras, mumificados ou não, reside em museus. A equipe visitou coleções no norte do Chile por quase três anos, observando uma ampla variedade do que havia sido encontrado.

Comércio dinâmico

“Assim que começamos a trabalhar nisso, encontramos muito material sobre araras e papagaios”, disse Capriles. “Colombo levou os papagaios de volta para a Europa e a importância histórica das penas de arara para as sociedades pré-colombianas era onipresente.”

A maior parte dos restos de pássaros encontrados pelos pesquisadores data de 1000 a 1460 d.C., começando no final do império Tiwanaku e pouco antes de os incas passarem pela área. De acordo com Capriles, foi uma época de guerra, mas também um grande período para o comércio, com frequentes caravanas de lhama circulando.

Os pesquisadores estudaram 27 restos mortais completos ou parciais de araras-vermelhas e papagaios da Amazônia em cinco locais de oásis no Atacama. Usando análise zooarqueológica, reconstrução dietética isotópica, datação por radiocarbono e testes de DNA antigo, a pesquisa catalogou araras-vermelhas e pelo menos cinco outras espécies de papagaios que foram transportados do leste da Amazônia. A equipe mapeou as distintas faixas de habitação natural de araras-vermelhas, araras-azuis e araras-amarelas e os vários papagaios para tentar determinar como eles viajaram para o Atacama.

Os pesquisadores também descobriram que os pássaros estavam comendo a mesma dieta dos agricultores que os possuíam.

“O que consideramos interações aceitáveis ??com os animais sob nossos cuidados era muito diferente naquela época”, disse Capriles. “Alguns desses pássaros não viveram uma vida feliz. Eles eram mantidos para produzir penas e suas penas eram arrancadas assim que cresciam.”

Associação com sepultamentos

Talvez mais incomum do que a importação de papagaios e araras e sua utilidade na produção de penas seja o tratamento após a morte. Muitos dos papagaios foram encontrados mumificados, com a boca bem aberta e a língua para fora. Outros tiveram suas asas abertas em voo permanente.

“Não temos a menor ideia de por que eles foram mumificados dessa forma”, disse Capriles. “Eles parecem ter sido eviscerados pela cloaca (uma abertura excretora e reprodutiva comum), que ajudava a preservá-los. Muitas vezes, eram embrulhados em tecidos ou bolsas.”

Infelizmente, muitos dos pássaros eram mercadorias resgatadas – adquiridas fora de projetos arqueológicos formais. Assim, alguns tipos de dados estão faltando. Mas os pássaros são normalmente associados a sepultamentos humanos.

A maioria das múmias foi encontrada em Pica 8, um local próximo a um oásis que ainda hoje existe como um local de transporte de mercadorias. Pica 8 teve agricultura durante o tempo em que os pássaros lá viviam e atualmente produz limões valiosos.

“Sabemos que os pássaros viviam lá”, disse Capriles. “Que comiam os mesmos alimentos que as pessoas comiam enriquecidos com o nitrogênio do milho fertilizado com esterco de aves marinhas. Lhamas não são os melhores animais de carga, porque não são tão fortes. O fato de caravanas de lhamas trazerem araras e papagaios dos Andes e atravessar o deserto até esse oásis é incrível.”

Fonte: Revista Planeta