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O Judiciário e o golpismo nas redes

Foto: Reprodução/EstadãoO Judiciário e o golpismo nas redes
O Judiciário e o golpismo nas redes

O País viveu momentos de especial apreensão neste ano, com investidas inéditas contra o sistema eleitoral e o regime democrático, o que exigiu vigilância extraordinária do Poder Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ainda não se pode dizer que tudo voltou à normalidade – bloqueios nas estradas e manifestantes na frente de quartéis contra os resultados das eleições são sintomas de um fenômeno maior, que tem tudo para tensionar o funcionamento das instituições democráticas por vários anos –, mas é preciso reconhecer que a eleição acabou. Não há mais razão para o Judiciário seguir com o papel de interventor das redes sociais, o que só alimenta o imaginário golpista.

Em primeiro lugar, o bolsonarismo não foi vítima nestas eleições. O presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores não apenas difundiram desinformação e desconfiança contra o sistema eleitoral, como descumpriram em patamar inédito a legislação eleitoral. Desafiaram inúmeras decisões judiciais, instigando a população contra elas, em perversa manipulação: a aplicação absolutamente corriqueira da jurisprudência do TSE foi muitas vezes apresentada como violação da liberdade de expressão.

O comportamento bolsonarista exigiu, assim, cuidados especiais. Foram ataques inéditos contra a democracia, em relação aos quais não havia remédio previamente estabelecido. O Congresso foi omisso em regular as redes sociais. E muitas vezes as próprias empresas proprietárias das plataformas digitais foram coniventes com o uso ilegal de seus perfis. Ainda que não seja – a lei vale para todos –, em muitas situações o mundo digital pareceu ser um mundo sem lei. O Judiciário não podia se omitir.

No entanto, passadas as eleições, é hora de as águas voltarem ao seu leito normal. O TSE não tem atribuição para ser o interventor do debate público nas redes sociais. Se, em circunstâncias excepcionais, foi necessário bloquear perfis com comportamentos suspeitos – que colocavam em risco a paz e o bom funcionamento do processo eleitoral –, agora as circunstâncias são outras.

Em abril de 2019, em outro caso – era um inquérito criminal no âmbito do STF –, o ministro Alexandre de Moraes voltou atrás numa decisão sua, revogando a censura imposta aos sites da revista Crusoé e de O Antagonista. Na ocasião, dissemos neste espaço que “não cabe à Justiça determinar o que é e o que não é verdadeiro, ordenando retirar – ordenando censurar, repita-se – o que considera que não corresponde aos fatos” (O STF decreta censura, 17/4/2019).

A decisão de Alexandre de Moraes que violou a liberdade de expressão durou poucos dias. De forma muito correta – pode-se dizer, corajosa –, o próprio ministro do STF reconheceu seu erro e suspendeu a ordem restritiva. Desde então, a decisão que decretou a censura foi frequentemente citada por bolsonaristas como exemplo da violação das liberdades que eles estariam sofrendo por parte de Alexandre de Moraes. Na verdade, o caso mostra justamente o oposto. Ao constatar seu erro, o magistrado teve a grandeza de retificar imediatamente, restaurando a liberdade de expressão.

Ainda que sejam contextos diferentes – as decisões da Justiça Eleitoral bloqueando perfis de redes sociais não se baseiam em juízo de verdade sobre o conteúdo publicado –, relembrar o caso de 2019 pode ser didático neste momento. A revogação de decisões não diminui a autoridade de um tribunal, tampouco desqualifica o magistrado. Ao contrário, trata-se de importante manifestação de que o critério da decisão não é a vontade do juiz, mas a lei. No caso do bloqueio dos perfis, mais do que admitir um erro, trata-se de reconhecer que as circunstâncias já não exigem as restrições.

O bolsonarismo continuará tensionando as instituições democráticas e distorcendo o debate público. Eles agem como quem são. A reação do Judiciário deve ser muito diferente. A Justiça aplica a lei, dentro do estritamente necessário. Essa é a melhor resposta da Justiça: a reafirmação firme e serena da lei.

Fonte: Estadão