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Gêmeas passam por cirurgia de redesignação sexual: “Almas não têm gênero”

Conheça a trajetória de libertação das irmãs Sofia e Mayla, de 19 anos, as primeiras gêmeas que realizaram a operação no mundo
Foto: Reprodução/CaprichoSofia e Mayla foram as primeiras gêmeas que realizaram a cirurgia de redesignação sexual no mundo Juliana Diaz
Sofia e Mayla foram as primeiras gêmeas que realizaram a cirurgia de redesignação sexual no mundo.

“Quando a gente ia a restaurantes, o povo perguntava: ‘Onde estão suas filhas?’; e meu pai corrigia falando que eram filhos. Eu queria enfiar minha cara no poste”, recorda Mayla Phoebe, de 19 anos, sobre episódios da infância inseparável que viveu com sua irmã, Sofia Albuquerck, também de 19 anos. As gêmeas idênticas, naturais de Araxá, interior de Minas Gerais, nunca se identificaram como sendo do sexo masculino e recentemente passaram juntas pela cirurgia de redesignação sexual. Aliás, Mayla e Sofia foram as primeiras gêmeas a realizarem a operação no mundo! Parece um marco épico e fora da curva, e realmente foi algo que mudou a vida das meninas. Mas, ao conversar com as irmãs, é possível perceber que para elas sempre foi tudo muito mais simples. Pelo menos mais simples do que é para a sociedade.

Mayla e Sofia tiveram o privilégio de contar com o apoio familiar. Os parentes tinham medo do preconceito que elas poderiam enfrentar, mas nunca receio de quem elas eram. O pai, por motivos religiosos, foi quem mais ofereceu resistência inicial, especialmente quanto à operação. “Nossa irmã mais velha que nos contou sobre a cirurgia e meu pai falou que aquilo não era de Deus. A gente tinha 11 anos”, contam as gêmeas. “Mas uma coisa que nossa avó sempre falou foi que almas não têm gênero. Então, não entendo por que ainda existem tantos religiosos homofóbicos e transfóbicos”, questionam.

Quando a gente fala que a questão da sexualidade sempre foi simples para elas não significa necessariamente que tenha sido fácil. Por volta dos 6 anos, elas perceberam que o incômodo constante era causado pela presença de algo que não combinava com quem elas sempre foram: o órgão sexual masculino. “Eu cheguei a ter úlcera, porque eu deixava meu membro muito apertado o tempo todo, porque eu não aceitava sentir aquele negócio solto no meu corpo. Deixava preso até para dormir”, conta Mayla. Sem terem muito com quem conversar, elas encontraram apoio uma na outra, para desabar e dividir as dores. Ambas salientam que nunca odiaram o corpo que tinham, apenas não se identificavam com o sexo que lhes fora imposto no nascimento só porque haviam nascido com um pênis em vez de uma vagina. “Eu não escolhi nascer assim, eu só nasci e ponto. Quem vai escolher sofrer preconceito e se submeter a um procedimento cirúrgico arriscado e de longa recuperação se não fosse real?!”, questionam.

Na infância e também em parte da adolescência, as irmãs sofreram muito bullying. Talvez você imagine que os piores episódios tenham ocorrido na escola, mas na verdade muito do preconceito sofrido veio por conta de morarem em uma cidade pequena, em que todos sabem um da vida do outro. “Eu não sabia lidar com isso. Ficava com um sorriso na cara, mas eu estava me afundando. Daí juntou isso tudo com coisa da faculdade, problema familiar, pandemia… Me senti tipo um balde que estava enchendo de mágoas até chegar a um ponto em que transbordou. Eu não sabia mais o que eu estava fazendo. A insônia era constante. Então, teve um dia que tomei muito remédio para dormir, porque só queria descansar. Lembro de acordar no hospital“, desabafa Sofia sobre o episódio em que tentou suicídio.

Idênticas, opostas e complementares

Conversar com as gêmeas de Araxá é incrível! Em uma relação meio entre tapas e beijos, elas mostram que são bastante diferentes. “Somos espelho. Uma o inverso da outra”, entrega Sofia, que é estudante de engenharia e mais tímida. Mayla estuda medicina em Buenos Aires e é mais extrovertida. Inclusive, quando era mais nova e usava documento falso para entrar em baladas, seu nome era Valmira. Sofia já é mais caseira e gosta de jogar videogame. No fundo, uma completa a outra.

Acompanhamento psicológico sempre foi uma realidade na vida das irmãs, que começaram o tratamento hormonal com anticoncepcional por volta dos 15 anos*. No começo, foi intenso e alguns especialistas até disseram que a quantidade indicada pelo médico na época era uma “bomba”. Elas não se arrependem. “Nossa voz sempre foi a mesma, o que mudou mais foi o corpo. A primeira transformação foram os seios, que começaram a crescer um mês depois do início do tratamento. Doía, mas era bom”, lembram. Hoje, elas fazem uso de injeção de anticoncepcional como qualquer mulher cis que faz uso do método contraceptivo.

Quando questionadas se ficavam incomodadas por serem sempre chamadas de “mulheres trans”, e não apenas de mulheres, a resposta foi sim. Mayla inclusive contou que não se sente 100% confortável com o termo “transexual”. “Foi a sociedade que também impôs ele. Mais um rótulo. Sermos transexuais não nos torna menos mulheres”, garante a estudante de medicina, cujo maior sonho é ser mãe: “Vou adotar”, assegura.

A cirurgia

Tanto Mayla quanto Sofia tiveram relacionamentos antes de passarem pela cirurgia de redesignação sexual. Ambas disseram que nenhum dos homens com os quais se relacionaram mais sério percebeu que elas tinham um órgão sexual masculino. Se perceberam, fingiram que não. Alguns até entraram em contato depois que as matérias sobre elas começaram a sair na mídia dizendo que nunca tinham desconfiado. O sexo era sempre anal e muitos dos caras, inclusive, elogiavam o “canal vaginal apertadinho” delas. Homens...

Faz pouco mais de um mês que elas foram para a mesa de operação, mas o preparo começou bem antes. Um longo período de acompanhamento psiquiátrico (Mayla fez um ano e Sofia fez três) e várias sessões de depilação a laser no saco escrotal, uma exigência pré-cirúrgica. Como no SUS a fila de espera é gigante, as irmãs foram atrás e descobriram que havia uma clínica no Brasil que realiza o procedimento – anteriormente, elas cogitavam ir para a Tailândia para tornar o sonho realidade. O fato de ser particular foi um obstáculo, mas, ao descobrir que as netas precisavam de dinheiro, o avô Agnelo vendeu uma casa que tinha, pois tudo o que mais queria era ver as meninas felizes.

“Quando eu coloquei silicone, fiquei muito ansiosa. Só que, quando fiz a cirurgia de redesignação sexual, eu não fiquei, porque eu não estava acreditando ainda. Era como se fosse um sonho! Quando o doutor foi me visitar depois da cirurgia e perguntou como eu estava me sentindo, eu disse que estava livre. Não estava nem ligando que estava toda costurada”, conta Sofia, que recorda como foi o primeiro banho de leito pós-cirurgia: “A primeira coisa que pensei foi: ‘Não quero que me deem banho, porque vão ver meu pinto’. Só que eu não tinha mais ele! Eu tinha pepeca! Comecei a rir de alívio.”

O sentimento que acometeu Mayla foi semelhante. Ela, enfim, estava totalmente livre. “Eu chorei no meu primeiro banho pós-cirurgia. Eu estava muito feliz! Tomar banho é a melhor parte”, assegura. A mais desconfortável para ambas, além de terem ficado uns bons dias sem poder ir ao banheiro fazer o número dois, por causa da recuperação, é a dilatação que precisam fazer. Nos primeiros dias do pós-cirúrgico, é preciso introduzir um pênis de borracha no canal, para que ele não feche. “Depois cai para uma vez por dia, daí dia sim e dia não, e depois uma vez por semana pro resto da vida”, explica Mayla. “Na primeira dilatação eu chorei! Minha pressão até caiu”, conta Sofia.

Como é a operação

No Brasil, a operação de redesignação sexual pela rede particular é feita pelos médicos Claudio Eduardo Pereira de Souza e José Carlos Martins, no Hospital Santo Antônio, em Blumenau, Santa Catarina. O custo pode chegar a R$ 150 mil. O SUS também oferece a operação, autorizada pelo Ministério da Saúde a ser realizada em apenas cinco hospitais (o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, o HC da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, o HC da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, o HC da Universidade de São Paulo e o Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro). A fila de espera pode chegar a cinco anos e é necessário entrar com uma ação judicial ao fazer a solicitação.

As primeiras cirurgias de redesignação em caráter experimental foram liberadas pelo Conselho Federal de Medicina no país em 1997 e só em 2008 o Sistema Único de Saúde passou a realizar os procedimentos. “Ela é uma cirurgia estético-funcional, porque traz tanto a parte estética, pois a paciente vai ter a chamada neovagina, quanto a funcional, porque ela vai ser capaz de fazer xixi sentada, sexo com penetração… Ela traz pra paciente todo um conforto, porque a maneira como ela se entende é a maneira como ela vai se expressar”, esclarece o Dr. José Carlos Martins. No caso da cirurgia em mulheres trans, a técnica é a da inversão peniana. “Pegamos uma parte do pênis associado a um segmento de pele da bolsa escrotal e fazemos a invaginação desse complexo para dentro do perímetro. Também confeccionamos o neoclitóris, onde a paciente terá a sensibilidade”, explica o Dr. Claudio Eduardo Pereira de Souza.

No caso do procedimento feito em homens trans, há duas técnicas. Na primeira, uma incisão é feita na pele ao redor do clitóris para liberar o órgão e formar o neopênis. Daí o médico usa os tecidos mucosos da vagina e os lábios vaginas para dar revestimento e volume ao membro construído. Na outra, chamada faloplastia, são usados enxertos de pele, músculos, vasos e terminações nervosas de partes do corpo, como do antebraço e da coxa, para a construção do neopênis.

A cirurgia da Mayla e da Sofia durou 4h40min e foi um sucesso! A recuperação total demora cerca de três meses, quando é possível retomar as atividades físicas e ter relações sexuais, sempre com proteção, pois os métodos contraceptivos não evitam somente uma gravidez indesejada, mas protegem contra infecções sexualmente transmissíveis. Ainda no caso de mulheres trans, como a neovagina não apresenta lubrificação natural, é indicado utilizar lubrificantes durante a transa.

*Em 2020, a idade mínima para começar o tratamento hormonal subiu para 16 anos. A cirurgia de redesignação pode ser feita a partir dos 18.

Fonte: Capricho