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Bartomeu, contratações, Sétien, Messi: a anatomia da profunda crise do Barcelona

Foto: InfoesporteClube faz a sua pior temporada desde 2007/08 após gastar mais de 1 bilhão de euros em transferências durante mandato de presidente. E agora quer fazer limpa em elenco envelhecido
Clube faz a sua pior temporada desde 2007/08 após gastar mais de 1 bilhão de euros em transferências durante mandato de presidente. E agora quer fazer limpa em elenco envelhecido

“Se eles não sabiam por que ganhávamos, como vão saber por que perdemos?”. A frase atribuída a Johan Cruyff, um dos maiores pensadores do futebol, ecoa em Barcelona dias depois da maior derrota do clube desde a década de 40. Os 8 a 2 sofridos para o Bayern representam não apenas números, mas uma mudança de ciclo forçada na dor, quando tudo poderia ter sido diferente.

Eliminações para Juventus, Roma e Liverpool surgiram como sinais, ignorados ao passo que outros troféus preenchiam temporadas seguidamente vazias de futebol e ideias. Mas, pela primeira vez em 12 anos, não sobrou nada além da vergonha de Piqué ou do silêncio atônito de Messi e Ter Stegen no intervalo em Lisboa.

É como se o Barcelona fosse uma grande locadora de vídeo nos anos 2000. Ela sabia que novas tecnologias chegariam cedo ou tarde, mas insistiu em acreditar que o Blu-Ray, o DVD ou o VHS (dependendo da sua faixa etária) permaneceriam. Até ser engolida impiedosamente pelo mercado, como o fim de uma era – tal qual seria a saída de seu maior jogador, descrente no presente e futuro do clube.

Mas como se chegou até aqui? O que levou o Barcelona, outrora referência, a jogar fora alguns dos últimos grandes anos de Messi? E o que reserva o futuro com um novo treinador e eleições a caminho? Tentaremos explicar abaixo.

O pior time desde...

Primeiro, a referência. Até então, a pior temporada do Barcelona na história recente havia sido em 2007/08. O clube terminou o Campeonato Espanhol em terceiro, com 67 pontos (a 18 do campeão Real Madrid), e caiu nas semifinais da Copa do Rei (Valencia) e Liga dos Campeões (Manchester United).

Ao fim daquela temporada também houve a sensação de esgotamento. O holandês Frank Rijkaard deu lugar a Pep Guardiola, que iniciou uma pequena transformação no elenco, abrindo mão de Deco e Ronaldinho e acomodando crias da base como Messi, Busquets e Piqué (de volta após passagem pelo Manchester United) em torno de Xavi, Iniesta e companhia. Como num toque de mágica, ganhou absolutamente tudo no ano seguinte.

A versão atual do Barcelona preserva os resultados decepcionantes: foi vice no Espanhol com 82 pontos (sua menor pontuação justamente desde 2007/08), a cinco do Real, e acabou eliminado nas quartas de final tanto na Copa do Rei (Athletic Bilbao), quanto na Champions (vocês sabem para quem). Ainda houve uma Supercopa da Espanha em novo formato, que derrubou Ernesto Valverde com a derrota para o Atlético de Madrid na semifinal.

Acontece que este Barça não precisa de mudanças, e sim de uma revolução completa, quase que do presidente ao ponta-esquerda – salvando-se, talvez, o goleiro, um zagueiro com projeção, um jovem meio-campista e o camisa 10.

As “vacas sagradas”

Ter Stegen, Lenglet, De Jong e Messi são os únicos nomes apontados pelo diário catalão “Sport” como inegociáveis. No meio deles há muitas “vacas sagradas”, expressão do mundo corporativo para funcionários que já não produzem de acordo com seu status, mas conservam grande influência perante os demais. No caso do Barça, o grupo dos veteranos.

Dos sete jogadores de linha acima dos 30 anos, seis começaram contra o Bayern na escalação mais velha do Barcelona num jogo de Liga dos Campeões (com média de 29 anos e 329 dias).

A exceção foi Rakitic, que não saiu do banco de reservas.

Os campeões de 2015 ganharam rugas, mas não quiseram largar o osso. Hoje representam um peso dentro do time, pelo pouco retorno, e do elenco, asfixiando a folha salarial. Nenhum dos trintões terá o contrato encerrado nesta janela, ou seja, o Barcelona precisará arrumar compradores para se livrar dos altos vencimentos – eles representam mais de 60% de todo o montante.

Quem se arriscaria a pagar os € 15 milhões anuais de Suárez ou os quase € 10 milhões de Busquets - com ou sem pandemia? Real Madrid e Bale estão aí há anos para provar que não basta a vontade do clube.

A falta de um plano mais criterioso permitiu que o Barça se desintegrasse gradualmente. Roma e Liverpool cobraram um preço físico e psicológico, mas foram derrotas apertadas no placar agregado, quando poderíamos apontar casualidades de um mata-mata. O 8 a 2, não. Foi o resultado de um time aniquilado mentalmente, na bola e também em distância percorrida (os alemães correram quase 10 quilômetros a mais). No futebol moderno e exigente de hoje, é impossível competir na elite da elite sem fôlego.

Errar é humano...

Um dos aspectos traiçoeiros de ser uma potência em seu país é a falta de balizamento. Não é que o Barcelona tenha fechado os olhos para uma renovação, mas precisou gastar mais de 1 bilhão de euros desde 2014 (no mandato de Josep Maria Bartomeu) até que enfrentasse de fato as reais consequências.

Neste período, o Barça ganhou quatro de seis Campeonatos Espanhóis e quatro de seis Copas do Rei - um excelente aproveitamento de 66% entre os principais torneios nacionais. Para cada eliminação na Liga dos Campeões havia aproximadamente dois troféus, sem mencionar as Supercopas. As temporadas não eram completas, mas o aluno ainda assim passava de ano direto.

O Barcelona se escorou na sua condição de superclube nos últimos anos. O que tinha era o suficiente para os padrões nacionais. Mas, lá fora, o buraco era mais fundo, numa relação menos fidedigna entre milhões despejados no mercado de transferências e resultados dentro de campo.

Partindo do princípio que todos os clubes já erraram em contratações, o Barcelona de fato se superou. Desde julho de 2014 até janeiro de 2020, 33 jogadores reforçaram o clube em definitivo – somando € 1,1 bilhão. Apenas 14 (42%) terminaram a última temporada, incluindo o já negociado Arthur, reforço da Juventus.

É difícil precisar quantas contratações se transformaram em sucesso dentro de campo, mas convenhamos que a margem de acerto é ínfima - a tabela acima não mente. Não à toa, no mesmo período, o Barcelona teve quatro diretores esportivos diferentes: Zubizarreta, Robert Fernández, Pep Segura e Abidal.

Nomes como Xavi, Iniesta, Mascherano, Daniel Alves e Neymar saíram sem uma reposição à altura. Enquanto isso, os três mais caros da história do clube (Coutinho, Griezmann e Dembélé, somando € 402 milhões) começaram Barcelona x Bayern no banco. Ironicamente, o que jogava pelos alemães marcou dois gols.

Ah, sabem quanto o Bayern precisou investir para montar o seu elenco atual? € 401,5 milhões.

As finanças

Para tudo há um limite. Segundo análise de Rodrigo Capelo, especialista em finanças do futebol, o Barcelona já superou € 1 bilhão em endividamento. Menos mal que o exercício da temporada 2018/19, antes da pandemia, apontou um faturamento recorde de € 840 milhões. A diferença ainda não é considerada preocupante, mas tampouco é confortável.

- Algo deu errado na filosofia que levou o Barça à fase áurea. O clube não conseguiu repor os ídolos com a base, foi ao mercado e começou a gastar muito mais com contratações de atletas. Isso agora cobrará um preço para o futuro - opinou.

- Quem acha que o Barça pode sair contratando Neymar, Cristiano Ronaldo e Guardiola porque está cheio da grana está redondamente enganado. É um clube que ainda pagará pelos erros que cometeu nesses últimos anos em investimentos - completou Campelo.

Hoje não há dinheiro para revolução alguma. Para conseguir mexer no elenco, a diretoria conta com vendas, embora o mercado sinalize transferências mais comedidas em função das consequências do coronavírus. O próprio Barcelona, sem público no Camp Nou e tampouco com visitas ao museu durante os últimos meses, sofrerá um impacto profundo nas finanças.

- Um dos trunfos de Bartomeu é ter feito do Barcelona o clube com maior faturamento do mundo. Mas também é o que mais gasta e não gera recursos excedentes para enfrentar os desafios do futuro. Por isso, nos últimos anos, tem sido obrigado a fazer operações contábeis para equilibrar as contas. No ano passado a troca Cillessen-Neto e nesta a troca Arthur-Pjanic são bons exemplos. Se adicionarmos a chegada inesperada da Covid-19, as contas do clube estão em proporções preocupantes. Tudo isso tem sido acompanhado por um gradual distanciamento entre o clube e seus proprietários, os sócios, que dificilmente são levados em consideração, exceto a cada seis anos, na eleição de presidente – disse Víctor Font, candidato à presidência da oposição, em entrevista ao diário “Olé”.

- Será um clube com um bilhão de receitas, mas com um bilhão em despesas e um bilhão em dívidas. E isso vai ser muito difícil para quem vier. O que se pede a eles é que deixem todos os instrumentos para reverter esta situação. E, pelo que vejo, parece que isso não está acontecendo – criticou o ex-presidente Joan Laporta ao “El País”.

Na última segunda-feira, a diretoria decidiu que a convocatória formal para as próximas eleições presidenciais será em janeiro de 2021, conforme permitido no estatuto do clube. O pleito deve ocorrer no primeiro dia com jogo a partir de 15 de março do ano que vem.

Desta maneira, a chapa eleita terá todo o mercado da temporada 2021/22 para reestruturar o clube, algo que a direção atual prometeu iniciar agora com "o plano de choque para reverter a atual situação esportiva e econômica, baseado em mudanças profundas no time principal, e uma redefinição orçamentária para fazer frente à nova situação provocada pela pandemia".

A política

Em sua caminhada, Bartomeu foi perdendo escudos pelo caminho. Saíram o gerente Pep Segura e o vice-presidente esportivo Jordi Mestre, de quem o presidente assumiu funções. Em abril, outros seis dirigentes deixaram o clube criticando a forma como Bartomeu lidou com a questão da redução salarial nas redes sociais e as implicações financeiras da crise do coronavírus.

A resposta de Messi em comunicado oficial na época deixou clara sua insatisfação:

- Não deixamos de nos surpreender que dentro do clube houve quem tratou de nos colocar em segundo plano e tentar colocar pressão sobre algo que sempre tivermos total noção de que faríamos. Dito isso, o acordo demorou alguns dias porque simplesmente nós estávamos buscando uma fórmula para ajudar o clube e também seus funcionários nesses momentos tão difíceis – escreveu o craque argentino.

Eles ainda criticaram o clube por contratar no início deste ano os serviços da I3 Ventures, empresa de mídia acusada de criar perfis falsos e postar ataques aos jogadores e personalidades do Barça que, em algum momento, tiveram atrito com a situação.

Após a repercussão, o Barcelona emitiu nota oficial confirmando que tinha contrato com a empresa, mas que ela "não possuía nenhum vínculo" com as contas que criticaram os atletas ou opositores do Barcelona.

Houve polêmica também com o secretário-técnico Abidal. Em fevereiro, o ex-jogador francês insinuou que “muitos jogadores estavam insatisfeitos” durante a reta final com o técnico Ernesto Valverde, demitido no mês anterior.

Messi também usou as redes sociais para defender o grupo:

- Sinceramente, não gosto de fazer essas coisas, mas acho que cada um tem que ser responsável por suas tarefas e cuidar de suas decisões. Os jogadores, do que acontece em campo, também somos os primeiros a reconhecer quando não estivemos bem. Os responsáveis pela área da direção esportiva também devem assumir suas responsabilidades e sobretudo se encarregar das decisões que tomam. Por fim, acho que quando se fala de jogadores deve dar nomes, pois, caso contrário, estaremos sujando todos e alimentando coisas que são ditas e não são verdadeiras.

Os bodes expiatórios

Abidal foi mantido no cargo até o fim do mandato de Bartomeu (ou pelo menos até novo conflito). Quique Setién, como era de se esperar, não resistiu. O treinador deixou o Barcelona após 25 jogos (16 derrotas, quatro empates e cinco derrotas) e uma estatística negativa: ele é o técnico com a menor passagem pelo clube desde o sérvio Radomir Antic, em 2003, que saiu após 24 jogos.

Em janeiro, Setién chegou prometendo “jogar bem”. Passou longe de cumprir, muito porque o resgate ao barcelonismo não é possível com as peças que lá estão. O futebol associativo de Guardiola exige também uma pressão alta que Messi e Suárez já não são capazes de exercer, tampouco seu meio-campo. Havia pouco combate sem a bola e, com ela, uma posse repetitiva, dependente de genialidades do camisa 10 na falta de praticamente todo o resto.

Valverde sobreviveu bastante no cargo – e até ganhou títulos – por ter escolhido a competitividade antes da identidade. Sétien, por outro lado, morreu com suas ideias ao encontrar um vestiário grande demais para ele e também para seu auxiliar Eder Sarabia, que rapidamente se desentendeu com os pesos pesados (ou as “vacas sagradas” antes mencionadas) do elenco. O tato também é um requisito fundamental a um treinador.

- As sensações são que o time tenta, mas não tem capacidade. Deixamos muito a desejar em vários jogos. Tudo que a gente viveu desde janeiro tem sido muito ruim. Temos que mudar muitas coisas, na realidade. Os torcedores estão ficando sem paciência porque nós não estamos entregando nada. É normal – avisou Messi após a derrota para o Osasuna, no dia em que o Real Madrid confirmou o título espanhol. A referência a janeiro, quando houve a troca de treinador, foi proposital.

No fim das contas, o Barcelona apostou numa fantasia. Jogou Sétien aos leões, lavou as mãos até onde pôde e agora recorrerá a um passado vitorioso (o holandês Ronald Koeman, autor do gol do título da primeira Champions) na esperança de que cobrirá os problemas escancarados.

Messi y nada más

Ou que Messi, aos 33 anos, tenha uma das temporadas de sua vida. Não aconteceu em 2019/20. Se pouco mudar, dificilmente acontecerá em 2020/21.

Não significa, porém, que Messi esteja se tornando prescindível. Os 31 gols e 25 assistências computados com a camisa do Barcelona provavelmente seriam os grandes números da carreira de renomados atletas – e isso diz bastante sobre ele.

Por outro lado, os 31 gols simbolizam seu pior registro pelo clube desde a temporada 2007/08. Apenas três deles foram na Champions (números mais baixos desde 2006/07).

Messi apenas amenizou uma dependência cada vez mais notória. Em outros tempos, talvez tivesse feito os seus 50 gols para cobrir a queda de Suárez (21 gols, também seu menor número) ou o desconforto de Griezmann (15 gols) no time.

Com a exigência de criar mais (no Espanhol os toques na bola aumentaram em 13%), compensou nas assistências e em passes para finalizações que não chegaram à rede. A tabela abaixo mostra que Messi teve a segunda temporada em que mais criou chances para companheiros, a que mais driblou e a que menos finalizou (números do Campeonato Espanhol + Liga dos Campeões):

Ainda assim, sua temporada foi a segunda melhor em participação direta nos gols do Barcelona (seja com gol ou assistência), empatada com a passada, quando acabou eleito o melhor do mundo pela sexta vez. É um sinal de que ele continua entregando, mas o restante não colabora.

Não custa lembrar que a artilharia do Barcelona na Liga dos Campeões está dividida da seguinte maneira desde a temporada 2016/17:

Messi - 32 gols

Gols contra - 9

Suarez - 9

Dembélé - 4

E o futuro?

O vínculo até 2021 possibilita a Messi especular o mercado. Se a convivência com Bartomeu tiver atingido o estágio de incompatibilidade, o craque argentino poderá sair. De uma forma ou de outra, a tendência é que jovens comecem a ganhar espaço no elenco principal.

Ansu Fati marcou oito gols em sua temporada de estreia aos 17 anos mesmo tendo sido apenas o 16º com mais minutos no elenco. Riqui Puig, de 21, foi o 19º, mas também deixou boas impressões quando jogou.

A eles devem se juntar Pedri, ponta destro de apenas 17 anos que atua pela esquerda (contratado ao Las Palmas), e o português Trincão, 20 anos, canhoto que faz o lado oposto, negociado pelo Braga por € 31 milhões. O meio-campista Monchu, que estreou no time principal contra o Napoli, é outro que deverá subir.

A solução do Barcelona dificilmente sairá de La Masia num primeiro momento, mas já passou da hora de o clube recomeçar a construir o elenco pensando na base. E aí, sim, dar passos reais de acordo com sua essência e, talvez, redescobrir por que se ganha e por que se perde.

Fonte: Globo Esporte